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Fogo, um distúrbio recente na Amazônia, mas devastador para o bioma

Publicado por Josiane Santos | Publicado em 15/09/25 13:00 , Atualizado em 24/09/25 13:50 | Acessos: 126

A ecóloga Erika Berenguer explica os riscos do fogo para o bioma e a urgência do fim do desmatamento (Foto: Acervo pessoal)

Por Josiane Santos

Foto capa: Adriano Nobre

O bioma Amazônia é composto por diversos tipos de florestas, como ombrófila (densa e aberta), campinarana, estacionais, igapós, várzeas, savanas, vegetação secundária, áreas de reflorestamento etc. Essa diversidade vegetal é importante para a regulação do clima, manutenção da biodiversidade e o equilíbrio hídrico. 

Entre as principais ameaças às florestas está o desmatamento, que elimina completamente a floresta, e também os incêndios florestais, que degradam os ecossistemas, reduzindo sua capacidade de se regenerar e de fornecer serviços ambientais. 

Para compreender melhor como essas ações afetam as florestas brasileiras e os desafios da conservação, conversamos com a pesquisadora Erika Berenguer, bióloga pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutora em ecologia pela Universidade de Lancaster (Inglaterra). Ela é membro do Comitê Científico do Programa de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia (LBA/Inpa-MCTI) e é uma das coordenadoras da Rede Amazônia Sustentável (RAS), que reúne vários projetos de pesquisa de grande escala composta por pesquisadores de mais de 30 instituições do exterior e do Brasil. A RAS é um projeto associado ao LBA. Berenguer desenvolve pesquisas nos temas degradação florestal, extração madeireira, fogo e desmatamento.

Berenguer ressalta a necessidade de acabar com os desmatamentos na Amazônia, pois suas consequências são a remoção completa da floresta e a perda da biodiversidade. 

Por que o fogo representa uma ameaça tão séria para as florestas da Amazônia?

Porque a Amazônia é uma floresta ombrófila densa, ou seja, é uma floresta que chove muito, e nessas florestas tropicais que chove muito não coevoluíram com o fogo. Ou seja, vários ecossistemas no mundo todo têm o fogo como um distúrbio natural, que acontece periodicamente. O intervalo pode ser de décadas ou pode ser de meros anos, mas é um distúrbio natural, como, por exemplo, as florestas de sequóias da Califórnia, as florestas no Mediterrâneo, as savanas no mundo todo. O fogo é um distúrbio natural. 

No caso das florestas ombrófilas densas, o fogo não ocorre porque é úmido demais para conseguir se propagar, mesmo com raios. O raio vai matar uma árvore, mas o fogo, quando desce naquela árvore, ele não consegue se propagar porque o material combustível, ou seja, as folhas, os galhos etc., no chão da floresta, é úmido demais. 

Sendo assim, a Amazônia não tem nenhum mecanismo de recuperação pós-fogo ou de resistência aos impactos do fogo. É o que ocorre nesses outros ecossistemas que eu te falei. Por exemplo, em ambientes que coevoluíram com fogo, onde ele ocorre de maneira natural, você vai ter árvores com a casca muito grossa, o que acaba gerando um isolamento térmico para o cerne [parte mais interna do tronco] da árvore. Ela não morre quando tem o impacto do fogo. Ou então você vai ter  espécies que só vão brotar (as sementes estão ali no chão), mas  só vão germinar depois que o fogo passar. Ou tem árvores que só vão dar fruto depois que o fogo passar. Enfim, você tem uma série de adaptações em relação ao fogo. 

Na Amazônia isso não ocorre. O fogo é um distúrbio recente. Nós estamos falando de milhões de anos de evolução. Os primeiros estudos sobre incêndios florestais na Amazônia são de 1988, ou seja, já tem quase 40 anos, o que mostra como é um distúrbio muito recente em termos evolutivos na floresta. A gente vê que depois que o fogo passa, se a gente pega as árvores grandes que têm mais de dez centímetros de diâmetro à altura do peito, aproximadamente, metade delas vão morrer depois do fogo, e elas continuam a morrer mesmo dois anos e meio depois do fogo. O pico de morte é imediato no primeiro ano, mas você ainda tem árvores que continuam morrendo mesmo dois anos depois do fogo,  porque são organismos muito lentos. 

O fogo tem um enorme impacto na floresta, o que leva a um colapso da biodiversidade e dos estoques de carbono nas áreas afetadas. Um estudo nosso, inclusive, foi desenvolvido em parceria com o LBA, mostra que em 2015, na região do Baixo Tapajós [Pará], a gente analisou uma região de 6,5 milhões de hectares, antes e depois dos incêndios de 2015, durante El Niño, e a gente viu uma mortalidade de um milhão de árvores por conta dos incêndios florestais na região. Isso levou a 495 teragramas de CO2[gás carbônico] sendo emitidos. Aquela região é só 2% da Amazônia. Se fosse um país, teria emitido mais que países como a Itália e o Reino Unido no mesmo ano.

Qual a diferença entre desmatamento e incêndios florestais e por que ambos são tão prejudiciais à Amazônia?

O desmatamento é a remoção completa da cobertura florestal. O desmatamento é binário: ou você tem a floresta, ou você não tem a floresta. 

O incêndio florestal leva à degradação da floresta. A floresta continua existindo, mas provendo uma quantidade significativamente menor de serviços ecossistêmicos, como, por exemplo, a estocagem de carbono e a conservação da biodiversidade. Mas a floresta continua existindo. É uma floresta muito degradada com características muito diferentes. O dossel é mais baixo e aberto, o microclima é mais quente e mais seco. Ainda assim, é uma floresta. E o desmatamento, não. Você não tem floresta. 

O fogo é utilizado no processo de desmatamento, mas não necessariamente ele vai gerar um incêndio florestal. O fogo pode ser utilizado para qualquer coisa, pode ser usado para fazer um churrasco. Isso não necessariamente leva a um incêndio florestal. 

O fogo na área rural da Amazônia vai ser usado no processo de desmatamento da seguinte forma. Entre os tratores de esteira e derrubada da floresta. Tudo aquilo que foi derrubado fica no chão durante meses ou semanas, durante a estação seca, até que aquele material morto fique seco o suficiente para que, ao jogar fogo, tudo queime, deixando a terra disponível para o plantio. Esse é o fogo do desmatamento, mas nesse caso, o fogo é apenas uma ferramenta no processo de desmatamento, assim como o trator de esteira é uma ferramenta. Assim como o fogo, o carvão e a grelha são ferramentas do teu churrasco. 

Agora, um incêndio florestal é quando o fogo que está sendo usado por qualquer motivo (no processo de desmatamento, na manutenção da pastagem ou na manutenção do roçado) escapa para dentro da floresta gerando o incêndio florestal. 

Historicamente e evolutivamente, isso não acontecia na Amazônia porque era muito úmida. Porém, com as mudanças climáticas e a degradação da floresta, o bioma está mais seco. O fogo em anos de seca extrema, não em todo ano, consegue se propagar dentro da floresta causando o incêndio florestal. 

É óbvio que o impacto do desmatamento (na biodiversidade ou no estoque de carbono) é muito maior do que de um incêndio, porque o desmatamento é binário: ou você tem a floresta ou você não tem. E, no momento que você não tem, você perde toda a biodiversidade, todos os estoques de carbono que estão presentes ali. 

Como o fogo altera a biodiversidade da floresta a curto e longo prazo?

Essa é uma pergunta complexa. A gente está falando de diversos grupos taxonômicos. No caso, diversos grupos da fauna e da flora. Vamos ter impactos diferentes nesses diferentes grupos. Para alguns, o impacto é mais imediato; para outros, mais de longo prazo. Quando a gente olha, por exemplo, as aves, logo depois do fogo, nós não vemos uma diferença tão grande quando vemos alguns anos depois nessa comunidade de aves. 

Tem uma coisa chamada de débito de extinção. É o seguinte:  depois que o impacto ocorre, não tem uma extinção local das espécies. A extinção local é quando só ocorre naquele local, não é da extinção global que é quando aquela espécie não existe mais na natureza. A extinção local é quando só naquele lugar específico não tem mais uma determinada espécie que antes existia ali. Por exemplo: houve um incêndio florestal, não necessariamente as árvores vão sumir. Teve incêndio hoje, amanhã elas já não estão mais mais ali. Não é assim que ocorre. Tem um tempo, um processo, até esses animais pararem de existir ali, seja porque não tem recurso, seja porque não tem abrigo. Esse tempo entre o distúrbio e a extinção local é o que a gente chama de débito de extinção. 

Tudo depende do que é curto e longo prazo e, novamente, depende de cada elemento da biodiversidade. Eu não tenho uma resposta única para sua pergunta, mas, no geral, temos visto que as espécies vão se modificando até que a gente tenha uma comunidade, tanto da flora quanto da fauna, diferente da que existia ali anteriormente. A gente vai ter uma maior presença de espécies generalistas, que são aquelas que ocorrem em qualquer lugar. Aquelas que não são muito exigentes em relação ao ambiente em que elas ocorrem.

Por exemplo, nós vemos muito a ocorrência de embaúba, depois de um incêndio florestal. Embaúba é uma árvore que cresce em terreno baldio. É uma árvore tão generalista que ela ocorre em qualquer lugar. Você não vai ter, depois de um incêndio florestal, crescendo um mogno. Não! Mas você vai ter uma embaúba crescendo. Essas espécies que crescem em qualquer lugar são as que virão depois de um incêndio florestal. 

Os incêndios florestais são relativamente novos na Amazônia. Nós só temos quase 40 anos de estudos dos primeiros estudos. Nós não sabemos ainda quais são os impactos de longo prazo. Um estudo feito no Inpa, na Duque [Reserva Florestal Adolpho Ducke], mostra que metade das árvores acima de dez centímetros do DAP [diâmetro da planta à altura do peito],  tinham 400 anos ou mais. São organismos de crescimento muito lento. Outros estudos, também do Inpa, mostram que espécies pioneiras, como as embaúbas, vivem em média 30 anos. Outras espécies pioneiras vivem 150 anos. 

O que é o curto prazo para uma árvore não é o curto prazo para um ser humano. A gente tem diferenças de expectativa de vida. Isso significa que nós não temos tempo suficiente para avaliar os impactos de longo prazo. O que a gente consegue entender é que a floresta se torna significativamente diferente em termos da fauna da flora. E que, com a intercessão das mudanças climáticas, e com isso, um aumento da frequência desses incêndios florestais, que não eram para estar acontecendo, essa floresta que já estava impactada vai ser cada vez mais impactada, o que só prejudica a recuperação da floresta. 

Sinceramente, hoje, o que a gente espera, olhando as modificações da fauna da flora, é que essas florestas nunca venham a se recuperar até porque os impactos vão continuar acontecendo.

As florestas conseguem se adaptar às pressões do desmatamento e das secas intensas? Até que ponto essa resiliência é possível?

Na Amazônia, tem áreas que já foram desmatadas antes e a floresta está crescendo, são as capoeiras ou florestas secundárias. Capoeira é uma palavra que vem do Tupi e quer dizer “o que um dia já foi floresta” O Inpa,  junto com a pesquisadora Rita Mesquita, inclusive, tem vários estudos sobre capoeiras. São florestas crescendo numa área que já foi desmatada. 

Agora, é uma floresta completamente diferente da floresta que existia ali anteriormente, tanto em termos de estoque de carbono quanto em termos de biodiversidade. As espécies da fauna e da flora vão ser muito diferentes das espécies que existiam ali antes.  A floresta pode se recuperar depois do desmatamento.  

Na Amazônia, se a área é abandonada, as florestas crescem. Porém, é muito importante enfatizar que essas florestas são significativamente diferentes das que existiam anteriormente ali. 

Com relação às secas intensas, o que as evidências mostram é que há um aumento da mortalidade das árvores depois de uma seca extrema, um aumento mais ou menos de 2% da mortalidade das árvores. Em termos de carbono, essas florestas, quando não sofrem nenhum outro tipo de distúrbio (extração seletiva, fogo) conseguem se recuperar, após uma seca intensa. O desmatamento é completamente diferente já que você removeu toda a floresta de uma região. 

Quais ações concretas podem ser tomadas — por governos e cidadãos — para reduzir os impactos do desmatamento e das secas?

Não tem como reduzir o impacto do desmatamento .Tem que acabar com o desmatamento. Isso é estabelecido na literatura há 50 anos. Não existe isso de reduzir o impacto do desmatamento. Inclusive, essa é a nossa meta junto ao Acordo de Paris.  

A gente fala na nossa NDC [Contribuições Nacionalmente Determinadas], nos comprometemos com uma redução drástica do desmatamento até 2030. Não existe “reduzir os impactos”, ultimamente. Existe acabar com o desmatamento na Amazônia. Isso é essencial.

Agora, como reduzir os impactos das secas extremas? A melhor forma que a gente pode fazer isso é votando. Não só no Poder Executivo, mas também no Poder Legislativo, em políticos que estejam lidando com as mudanças climáticas. As mudanças climáticas são cumulativas. Nós só estamos jogando mais gases do efeito estufa para atmosfera. Isso significa que os impactos vão se tornar cada vez mais intensos. Não tem como se tornar menos intenso. 

O que a gente precisa no mundo inteiro é reduzir as nossas emissões. E,  para isso, a gente precisa de políticos comprometidos em reduzir essas emissões. No caso do Brasil,  isso significa reduzir o desmatamento, já que 70% das nossas emissões são oriundas das mudanças do uso da terra. Também significa não abrir novos poços de exploração de óleo e gás, no Brasil e no mundo. O que todo mundo pode fazer é votar, tanto no poder legislativo quanto no poder executivo, em políticos que tenham as mudanças climáticas como a sua principal agenda.